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  • Foto do escritorBitten Magazine

Quando a mentira vira doença


Depois de publicarmos o artigo “a verdade sobre a mentira” no Facebook, uma das nossas leitoras enviou-nos um e-mail, no qual nos contou a sua história. Fora-lhe diagnosticada mitomania, um distúrbio psicológico que se desenvolve geralmente na infância, em crianças que têm dificuldade em lidar com frustrações e críticas.


São pessoas que precisam de atenção constante e que, por esse motivo, mentem sobre diversos aspetos, inúmeras vezes, sem se sentirem culpadas e sem constrangimentos. Constroem verdadeiras histórias, tão bem fundamentadas que tanto elas como os outros acabam por acreditar.


A mitomania resulta de problemas graves de autoestima, de empatia e de relacionamento com terceiros. Pode estar relacionada com outras doenças, entre as quais a bipolaridade, hiperatividade, dependências, distúrbios de personalidade, ansiedade ou depressão.


Pedimos autorização a Olga Pacheco para publicar o seu testemunho. Leia o relato na primeira pessoa.

“Fui filha única até aos 8 anos. Depois nasceu o meu irmão. Estava habituada a ser o centro das atenções e ter de dividir o carinho dos meus pais e avós com o Bruno afetou-me bastante naquela altura.


Nunca mais me esqueço da minha primeira mentira: disse que tinha caído de um muro e torcido o pé. Telefonei para a minha mãe e permaneci imóvel até ela me ir buscar. Estava tão triste que chorei desalmadamente cada minuto de espera e a dor tinha-se tornado quase real.


Após esse episódio, muitos outros se seguiram. Mentia sobre resultados de testes, dizendo sempre que tinha tido nota superior. Mentia aos professores sobre os trabalhos de casa, dizendo que não os fazia porque o meu irmão chorava muito e eu não conseguia descansar. Chegava inclusivamente a fingir que adormecia nas aulas, para chamarem os meus pais e eles se preocuparem comigo.


Mas achava normal, afinal, todas as crianças mentem, certo?


Quando cheguei à adolescência, continuava a ocultar factos. Ia sair com rapazes e dizia que estava em casa de amigas a estudar, pedia dinheiro para visitas de estudo, mas gastava-o em saídas à noite. Chegava a casa com ressaca e mascarava-a com uma indigestão… enfim… até aqui, nada de anómalo para a idade…


Durante o período em que estudei na faculdade, longe de casa, morei num apartamento alugado. A personagem que criei, durante 3 anos, era órfã, tinha trabalhado para juntar dinheiro e pagar o curso, viveu em instituições e na rua e, mesmo assim, tinha sido corajosa o suficiente para chegar até ali. As pessoas tinham pena e ajudavam-me de todas as formas possíveis e imaginárias, mas, acima de tudo, admiravam-me.


Crescer, mentindo, foi-me mostrando que tinha os seus benefícios. Obviamente que não estou a falar daquelas mentiras “piedosas” que todos contam… como inventar uma desculpa para faltar a um compromisso ou dizer à tia que ficou linda com o penteado novo, quando, no fundo, se acha que ficou horrível.


Inventava viagens que nunca havia feito e fazia autênticas montagens no Photoshop para partilhar nas redes sociais. Inventava doenças para não ir trabalhar. Aos amigos, inventava trabalhos que não tinha, espetaculares e repletos de concretizações. Inventava inclusive estados de alma para mim própria. Gostava de criar sentimentos que a minha vida não me proporcionava.


Entretanto, conheci o meu marido e consegui conquistá-lo à base de uma série de coisas que eu não era e de acontecimentos que nunca tinha experienciado.


Apresentei-me com uma pessoa fantástica. Claro que a verdade vem sempre ao de cima e não demorou muito para que o Filipe percebesse a minha essência. A nossa relação começou a desabar. Até que eu lhe disse que estava grávida.


Quando chegou a altura em que já não podia esconder mais o meu estado de graça fictício, aproveitei uma discussão acesa que tivemos, para bater com o carro e lhe dizer que tinha perdido o bebé. Fi-lo sentir culpado. A partir daí, os nossos conflitos foram-se agravando, mas permanecemos juntos.


Eu trabalhava numa empresa, como contabilista (devo referir que consegui o cargo, forjando as minhas habilitações literárias). Um dia, entrou um novo colega. Achei-o extremamente atraente. Tínhamos uma química que eu nunca tive com o Filipe. Envolvemo-nos. Nunca lhe disse que era casada.


Após o trabalho, íamos beber um café e passear. Mais para a frente, dava uma escapadela até casa do Vasco, nunca demorando muito tempo. Para o meu marido, tinha ficado a terminar umas tarefas adicionais, pois a empresa tinha-se associado a outra e os afazeres duplicado. Para o Vasco, vivia com uma mãe doente, que precisava de cuidados constantes e que não podia estar muito tempo sem companhia.


Não. Nunca me senti culpada nem com a consciência pesada. Nem mesmo depois de ser descoberta. O meu casamento acabou e a minha família deixou de me falar, mas eu não reconhecia o quão incorretos todos os meus comportamentos tinham sido.


Após o divórcio, fui viver para casa de uma amiga. Tinha perdido também o emprego, pois as notícias correram depressa. Numa noite, estávamos a jantar e já tínhamos bebido mais do que aquilo a que eu estava habituada. Não sei porquê, contei-lhe tudo. Tudo.


O bom de partilhar as coisas com amigos é que eles nos julgam um pouco menos. A Ana foi a primeira pessoa que teve coragem de me dizer que eu tinha um problema e de agir para o resolver.


Levou-me a um psicólogo, a um psicólogo que me diagnosticou mitomania. Continuava a não me sentir culpada, nem a ter consciência das repercussões dos meus atos, mas, pelo menos, havia, pela primeira vez, oportunidade de não continuar a repetir um padrão que me acompanhou ao longo de toda a vida e que, mesmo inconscientemente, ma tinha destruído e levado a fazer coisas que magoaram profundamente as pessoas que eu amo.


Várias sessões se seguiram, acompanhadas de medicação. Aos poucos, fui conseguindo ver os meus erros e isso fazia-me sofrer. Passei por estados de ansiedade e depressão, mas depois vi melhorias e cada vez menor era a minha vontade de mentir.

Arranjei um novo emprego e um novo amor, a quem não escondi o meu passado. Sentir o peso da mentira, tendo consciência dela, fez-me sentir livre cada vez que digo a verdade. E a verdade é que sou um ser humano muito imperfeito.


Obrigada por abordarem temas com os quais nos podemos identificar!


Da vossa leitora assídua,


Olga Pacheco.”

 

Gostou da partilha da nossa leitora? Então leia o artigo que a levou a escrever-nos: https://bittenmagazine.wixsite.com/bitten/novidades-1/a-verdade-sobre-a-mentira

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