O alfaiate que costurava sonhos à medida
- Bitten Magazine
- 5 de fev. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de fev. de 2019

Profissão antiga, como tantas outras que a história reza. Fazia a diferença num mundo onde somos constantemente obrigados a encaixar-nos. Ser alfaiate foi outrora um ofício louvado e de alto gabarito. Criavam-se roupas personalizadas, à medida de cada pessoa. Um luxo a que apenas alguns tinham acesso.
Feitas provas e ajustes, os clientes estavam prontos para deslumbrar com aquele fato ou peça que refletia a sua essência. Pagavam o preço justo pela exclusividade, mas também pela qualidade inquestionável. Costurava-se com muito saber e elegância, primava-se por entregar um trabalho excecional e alinhavavam-se os pedidos mais corriqueiros, com o mesmo orgulho e preceito do que os mais excêntricos.
Portugal é berço de tradições e costumes perdidos com o passar do tempo e, hoje em dia, já não se fazem sonhos por medida. Numa das bonitas ruelas lisboetas, podíamos encontrar, até ao passado ano, a alfaiataria do Sr. Joel. Hoje, encontramos apenas mais um estabelecimento de tapas e petiscos. Na primeira pessoa, conta-nos como foi entregar o negócio de família, sem poder lutar por ele.
- Sr. Joel, porquê alfaiate?
Na minha altura não havia muita escolha. Depois de feita a quarta classe, ia-se trabalhar. Jovem, muito jovem era eu quando costurei o meu primeiro fato. No entanto, sabia o que estava a fazer como se fosse gente grande.
O meu avô era dono de uma afamada alfaiataria. Cresci a vê-lo trabalhar. Era um artista! Enquanto não eram atendidos, os clientes divagavam sobre teoremas e teorias. Alguns aproveitavam para fazer negócios. E eu? Eu tirava-lhes a medida. Na minha cabeça, imaginava cortes e tecidos que iriam assentar, na perfeição, a cada um deles. Estava-me no sangue ser alfaiate. Nunca quis ser outra coisa.
Quando o meu avô morreu, herdei-lhe a loja. Foi o meu ganha-pão, mas também o meu lar, durante muitos anos. Dediquei-lhe mais horas da minha vida do que ao meu casamento. Admirava todas as histórias que lá se tinham passado e que faziam parte da sua. Fiz questão que mantivesse sempre o mesmo aspeto. Até os defeitos estavam imaculados! Nunca pintei nem uma parede.
- O que sentiu quando soube que iria ser despejado?
Com o passar dos anos, a realidade bateu-me à porta. Queria encomendar-me o enterro da minha profissão. Antes disso, já notava uma acentuada perda de clientela. Os centros comerciais e as lojas estrangeiras deram uma grande sarrafada no comércio tradicional, mas isso nunca foi um grande problema.
Tinha trabalhos frequentes ou bem pagos, com pessoas que já conhecia há muito tempo. Clientes fiéis, digamos assim. Morava há tanto tempo naquela rua que, mesmo que não me conhecessem, conheciam o meu trabalho e, em algum momento, requisitavam os meus serviços. Felizmente voltou a estar na moda o artesanato. Infelizmente o meu saiu de moda.
Em poucos meses fechava, pela última vez, a porta da alfaiataria. Despedi-me com uma lágrima nos olhos, não de tristeza, mas sim de revolta. Não é que eu não possa continuar a exercer noutros moldes, se bem que a idade já não me deixa ser tão engenhoso, contudo aquele era o meu lugar, o lugar que alguém que eu muito admirava ergueu a tanto custo e que tinha um charme que eu próprio não tenho.
- Sr. Jaime, acha que um dia a profissão de alfaiate vai extinguir-se por completo?
É uma questão pertinente. Para mim, já está extinta. Apesar de muitos jovens se intitularem de alfaiates (e terem aberto alfaiatarias), não conseguem recriar as particularidades dos antigos. Ser alfaiate era também ser conselheiro, era ter um brio que já não existe nos profissionais modernos. Quando um trabalho não ficava bem feito, fazíamos questão de recompensar o cliente. Éramos exigentes a esse ponto.
Quanto a mim, apesar de não ter o meu espaço, continuo a trabalhar. Visito os meus clientes em casa ou eles vão à minha. Continuo a não me ver a fazer outra coisa, até porque qualquer dia reformo-me. Tenho filhos e netos, mas nenhum deles me herdou o gosto. Uns estão no estrangeiro, outros simplesmente têm outras vocações. A minha neta mais nova passa muito tempo connosco. Já lhe ensinei a costurar e a minha esposa a bordar. Quem sabe se também não lhe corre no sangue o mesmo gosto que corria no meu. Pode não ser alfaiate, mas pode vir a ser estilista! Se a profissão não perdura, que perdure o nosso nome.
Por vezes passo pela rua que já foi minha e vejo a malta nova de copo na mão. Entristece-me que se matem os bons costumes em nome de costumes que se encontram por toda a parte. Não se sabe dar valor ao que é nosso. Chamem-se saudosista, ou o que quiserem, mas sinto falta das coisas que já não voltam.
A vida é feita de detalhes, dos maiores aos mais pequenos. Recuso-me a ter um site ou uma página na internet. Costumo dizer que serei encontrado por todos aqueles que precisarem de mim. Perdi tudo, mas não perco a dignidade e, no que depender de mim, vou honrar o meu ofício, até as minhas mãos e os meus olhos me permitirem.
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